Ontem e HojeÉ possível que muitas pessoas, ao lerem a respeito do genoma humano e dos últimos resultados sobre seu seqüenciamento, fiquem com a impressão de que as descobertas iniciais nessa área tenham sido recentes. Essa não é a realidade. As primeiras informações sobre a localização de nossos genes datam da primeira década de 1900, logo após a redescoberta das leis de Mendel, e se referem a genes que estão no cromossomo X. O conhecimento dessa localização é facilmente inferido, pelo fato de que os genes desse cromossomo apresentam um padrão particular de herança, que os revela. Por essa mesma facilidade de detecção, o primeiro segmento de mapa do genoma humano também se referiu à distância entre dois genes do cromossomo X (Daltonismo e Hemofilia), estabelecida na década de 30, por dois pesquisadores ingleses (Haldane e Bell). Duas décadas ainda se passaram para que o dinamarquês Mohr estabelecesse, em 1951, a distância genética entre dois outros genes (Lutheran e Secretor), localizados fora do cromossomo X, isto é, num autossomo. Entretanto, foi somente na década de 70, que as informações sobre a localização de genes atingiram o nível suficiente para impor a necessidade de reuniões internacionais sobre esse tema.
A primeira reunião sobre mapeamento do genoma humano ocorreu em 1973, em New Haven (E. U. A.) e divulgou dados a respeito de 31 genes dos autossomos e 88 do cromossomo X. No ano de 1991, quando a décima primeira dessas reuniões foi realizada em Londres, o conhecimento sobre o genoma humano já atingia 846 genes dos autossomos e 182 do cromossomo X. No Brasil, naquelas duas décadas, foram publicados trabalhos a respeito de ligação entre genes, principalmente por pesquisadores da USP e da UFPR.
Foi nesse panorama do conhecimento que o Projeto do Genoma Humano foi criado em 1987, nos E. U. A., como parte de um esforço internacional para mapear os genes e seqüenciar o genoma humano e de outros seres vivos. Esse projeto se originou da união de dois programas norte-americanos de pesquisa sobre o genoma humano, existentes nos Institutos Nacionais de Saúde (N. I. H.) e no Departamento de Energia. Esse ambicioso projeto de iniciativa pública foi inicialmente dirigido pelo Dr. James Watson, um dos descobridores da estrutura física da molécula do DNA, e, em 1993, sua direção passou para o Dr. Francis Collins, um dos descobridores de três genes responsáveis por doenças de muita gravidade (fibrose cística, neurofibromatose e coréia de Huntington).
No dia 26 de junho de 2000, em solenidade na Casa Branca, o presidente Bill Clinton anunciou o seqüenciamento de cerca de 90% do nosso genoma. Essa cerimônia também contou com a participação do primeiro ministro da Grã-Bretanha, Anthony Blair, via satélite, uma vez que o Wellcome Trust (Fundo de Caridade), de Londres, tem financiado 1/3 dos gastos do projeto público. Esse feito científico foi realizado em conjunto pelas iniciativas pública e privada (Celera Genomics Corporation de Rockville, Maryland). Constou, na época, que a iniciativa pública já havia empregado 250 milhões de dólares e cerca de 1.100 cientistas, enquanto a firma Celera havia gasto quantia semelhante e contado com a participação de mais de 500 cientistas.
A parte pública é formada por um Consórcio de centros de pesquisa, coordenado pelo Dr. Collins e constituído por dois grupos principais. Um desses grupos inclui três centros dos N. I. H. (Universidade de Washington, em St. Louis; Instituto Whitehead, em Boston; Colégio Baylor de Medicina, em Houston), o Instituto do Genoma do Departamento de Energia dos E. U. A. e o Centro Sanger na Inglaterra. O outro grupo engloba 16 centros, alguns também localizados nos E. U. A. e os demais, na França, na Alemanha, na China e no Japão.
A firma Celera foi criada, em 1998, com a finalidade de seqüenciar nosso genoma. É dirigida pelo Dr. John Craig Venter e tem o objetivo de lucro. Essa firma faz parte da PE Corporation (Corporação Perkin-Elmer), que também é formada pela PE Biosystems, líder na fabricação das máquinas de seqüenciamento do DNA, além de produzir outros equipamentos e reagentes usados em genética molecular.
O Consórcio público terminou, em junho de 2000, um rascunho que cobriu cerca de 85% das regiões do DNA que contém genes, disponível ao uso público em vários bancos de genomas, que podem ser acessados pela Internet e que têm sido sempre atualizados com as novas informações. A versão da firma Celera tem estado à disposição dos assinantes que pagam para consultá-la.
Entretanto, só a seqüência é de pouco uso para quem a consulta no banco de dados. Dos cerca de 3 bilhões de bases de DNA, apenas uma pequena fração se constitui em genes, isto é, possui a função de determinar a produção de proteínas. Assim, ambos os grupos têm trabalhado no que está sendo chamado de anotação automática. Essa anotação, feita por instrumentos de computação, dá indicações de supostas estruturas dos genes, bem como de pontos de início e de final de genes, possibilitando que os biólogos encontrem sentido na longa seqüência de bases do DNA humano. Os biólogos se beneficiam ainda mais quando também encontram referências quanto à semelhança de um gene com outros e sobre a semelhança entre a suposta proteína por ele determinada e outras proteínas encontradas em humanos ou em outros seres vivos.
No corrente mês de fevereiro, os trabalhos do Consórcio público e da firma Celera foram publicados nas revistas Nature (inglesa) e Science (norte-americana), respectivamente, marcando a entrada da Biologia no seleto grupo do que se considera "Big Science" e que teve a Física como principal integrante no último século.
É importante ressaltar que esses trabalhos ainda se constituem em rascunho na sua grande parte. No caso do trabalho do Consórcio público, esse rascunho cobre 94% do genoma, apresentando lacunas e certo número de ambiguidades, mas já com a descrição de 1/3 do seqüenciamento em sua versão definitiva. Mesmo quando o genoma completo estiver seqüenciado, isto não significará o completo conhecimento dos genes de nossa espécie. O seqüenciamento completo será uma extraordinária conquista, mas apenas se constituirá na base do que ainda estará para vir, ou seja, a identificação de todos os genes humanos. Considera-se que dos supostos cerca de 30.000 a 40.000 genes humanos (estimativa mais recente, feita em 2001), grande parte ainda não tem sua função conhecida. Apenas a identificação dos genes seqüenciados não é suficiente, pois se faz necessário o conhecimento da função que as proteínas determinadas por eles exercem em nosso organismo.
Desde seu início, o Projeto do Genoma Humano teve o objetivo de estudar o genoma de algumas espécies, além da humana: a bactéria Haemophilus influenzae, o fungo Saccharomyces cerevisiae, a planta Arabidopsis thaliana, o verme Caenorhabditis elegans, a mosca de frutas Drosophila melanogaster e o camundongo Mus musculus. Só o genoma do camundongo ainda não teve o seu seqüenciamento concluído.
Pode-se, a princípio, achar estranha a escolha de espécies tão diversas da nossa para terem seu genoma seqüenciado. Entretanto, como as espécies atuais derivaram de espécies ancestrais, através de modificações sucessivas, desde o aparecimento do primeiro ser vivo, há cerca de 3,5 bilhões de anos, todos os seres vivos estão relacionados em termos de herança biológica. Como nossa herança biológica é dada pelo DNA, encontram-se semelhanças entre os genes de diferentes espécies. Alguns genes se conservaram sem muitas modificações, através dos tempos. Outros, apesar de terem se transformado bastante, ainda guardam características que permitem achar sua semelhança com genes de outras espécies, às vezes até bem distanciadas, sob o ponto de vista filogenético. Assim, o conhecimento a respeito dos genes de uma espécie poderá levar a avanços no estudo dos genes de outra espécie.
Quando num desses organismos é isolado um gene semelhante a um gene humano pouco conhecido, muitos estudos podem ser feitos nessa outra espécie para elucidar a função do gene na própria espécie humana. Pode-se, por exemplo, verificar o padrão de expressão desse gene durante o desenvolvimento e o resultado que aparece pela perda de sua função ou pela sua expressão exagerada.
Dos genes humanos de seqüência e estrutura já conhecidas, sabe-se que 289 apresentam mutações que são responsáveis por doenças. Desses genes, 117 são semelhantes a genes estudados na mosca de frutas (drosófila), tais como o gene supressor de tumor, p53, com importante influência na etiologia do câncer, os genes tau e Parkin relacionados com a doença de Parkinson, vários genes envolvidos com a síntese de insulina, como também genes determinantes de receptores para hormônios.
No Brasil, apenas nos últimos anos está se verificando um esforço conjunto de instituições públicas e privadas no investimento da pesquisa de genomas. O passo inicial foi dado pelo diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), o físico Dr. José Fernando Perez, que decidiu, no início de 1997, que a FAPESP devia iniciar projeto audacioso na área da genética molecular, como forma de impulsionar nosso país a dar um salto nessa área. Na seqüência dessa idéia, surgiu a ONSA (Organização para Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos), que iniciou, no final de 1997, o seqüenciamento do genoma da Xylella fastidiosa, bactéria causadora da doença chamada de amarelinho, que ataca os laranjais. Esse seqüenciamento de 2,7 milhões de bases, o primeiro do genoma de um fitopatógeno, foi coordenado pelo Dr. Andrew Simpson e envolveu 192 pesquisadores de 35 laboratórios do Estado de São Paulo, tendo sido concluído em julho de 2000, com trabalho publicado na revista inglesa Nature e que teve merecido destaque na capa dessa revista.
O sucesso do trabalho sobre Xylella levou ao início de novos projetos sobre genomas, como o do Genoma do Câncer, que está detectando e seqüenciando os genes que se expressam em tumores cancerosos de várias partes do corpo. Também seqüenciamentos dos genomas da cana-de-açúcar e da bactéria Xanthomonas citri, causadora do cancro cítrico, estão sendo desenvolvidos pela ONSA. Além do auxílio financeiro da FAPESP, esses projetos são financiados por outras instituições (Instituto Ludwig, Fundo Paulista da defesa da Citricultura e COPERSUCAR, por exemplo).
No ano 2000, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência e Tecnologia, abriu edital de auxílio financeiro para grupos de pesquisa que desejassem integrar o Projeto Genoma Brasileiro. Foram selecionados mais de 20 grupos de pesquisa, que estão constituindo a Rede Nacional de Seqüenciamento de DNA, coordenada pelo Dr. Andrew Simpson, do Instituto Ludwig.
Espera-se que esse estímulo recente, dado pelas instituições públicas e privadas brasileiras, possa vencer o atraso de nosso país nessa área biológica, capacitando laboratórios e recursos humanos a enfrentar esses novos desafios da ciência.
Publicado no Jornal de Ciência e Fé de fevereiro de 2001